O Barrense


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Preconceito e julgamento

preconceito

[Uma terça-feira qualquer, num horário qualquer, numa venda qualquer, em uma sociedade peculiar]

– Sabe, não sou adepto de cerveja artesanal.
– O senhor já provou?
– Ainda não.
– Julgando sem ao menos tomar – literalmente hehe – conhecimento do produto?!
– É que me parece uma coisa gourmet, sabe?
– Gourmet?
– É!
– ???
– Cara, são estabelecimentos que se julgam requintados. Muitas vezes acompanhado de um primeiro nome terminado em “ria” de forma inapropriada – como brigaderia ou tapiocaria.
– Hum. Entendo. Dia desses vi uma pastelaria, o slogan dizia: O pastel divino, pelas mãos do Chef Celestino.
– É isso. Gourmet. E pastel é da cultura popular, não será um Chef que irá mudar isso.
– Claro, claro. No fim as pessoas precisam achar outras formas de identidade para se sentirem “exclusivas” ou para se diferenciarem em relação às demais.
– Tirou as palavras da minha boca…
– Mas voltando a cerveja… Não entenda cerveja artesanal como escanteio curto, coração aberto e amor platônico, uma coisa de gourmet. Cerveja artesanal é uma arte. Além do mais, você nunca a degustou e já está criando uma ideia completamente equivocada da cerveja.
– Eu sei, eu sei, mas tudo depõe contra ela: Arte? Degustar? Que papo é esse.
– É. Uma obra de arte. Nosso slogan: beba menos, beba com qualidade.
– Hum, sei. Agora cerveja é arte? Qual a diferença pra essas de mercado? Além do preço é claro…
– Não se compara. Nós respeitamos e prezamos pela lei de pureza alemã.
– Lei de pureza alemã? Vocês usam virgens na produção da cerveja?
– Virgens?! Cara…
– Prossiga, prossiga…
– A lei de pureza alemã consiste em conceber a cerveja apenas com: água, lúpulo, cevada e fermento. E nada mais.
– Tá, e o que tanto diferencia ela?
– Pois bem, a cerveja produzida no Brasil é uma verdadeira afronta ao rito milenar de “fabricar” cerveja. Passa-se longa da lei de pureza. Pra você ter ideia, a proporção de milho e cevada se equiparam.
– Milho?
– Sim! Milho.
– Caramba. Tô me sentindo uma galinha.
– Hehehe, por pouco tempo.
– Como assim?
– Cerveja artesanal, cara. Lei de pureza.
– Aaaaaaaaaaah.
– Só um momento que vou pegar uma pra você provar.

[pensa: – qual cerveja eu levo pra ele provar? Uma weizen? Não, não, o trigo pode assustar. Ale? O baque seria forte demais. Pilsen? Mais do mesmo? Não, claro que não. Hum, se for pra ingressar no cenário de cerveja artesanal, que seja com classe: Red Ale.]

– Senhor, vos apresento: Red Ale.
– Cerveja escura?
– Sim, algum problema?
– Cara, não me leve a mal, mas todo aquele discurso pra isso?
– Isso?
– Praticamente uma Malzbier com nome refinado.
– Pré-conceito é teu sobrenome? Tenha santa paciência.
– Tá bom, tá bom.

[pega o abridor de garrafa e o copo especifico para esse tipo de cerveja]

– Abre logo!
– Além de preconceituoso é afobado?
– É o calor do momento.

[finalmente abre a garrafa… serve no copo, a espuma sobe. Gut, gut]

– Então?
– Diria Silvio Luiz: “pelo amor dos meus filhinhos”. Isso é o néctar dos Deuses?
– Quase…
– Cara, jamais provei algo parecido. A sensação é, é…
– Divina!
– Divina! Falta-me o ar. Não sinto o chão sob meus pés. Eis que brota um vazio existencial em meu peito, o que foi a vida antes disso? Como passei vinte e cinco anos da minha vida sem isso? Hoje foi um divisor de águas: o pré e o pós-cerveja artesanal.

[pausa para outro gole: gut, gut, gut]

– Cara, sou eternamente grato.
– Pelo que?
– Por me apresentar a cerveja artesanal.
– Ah, não tem de que. É só o meu trabalho.
– Que trabalho, que trabalho.

[o ultimo e derradeiro gole, longo para apreciar essa incomparável iguaria: guuuuuuuut]

Não falou mais nada. Não era preciso. O brilho cristalino em seus olhos revelava uma mescla de sentimentos puros: ternura, alivio, paixão. Entregou-se ao novo. Aprendera uma lição: não mais julgaria.

Havia refinado algo mais sublime que seu paladar, a alma.


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Mini Mundo: Comitiva barrense nos Estados Unidos

Minu Mundo coluna

Reza a lenda que uma comitiva barrense rompeu barreiras sociais em solo americano.
O causo aconteceu entre as décadas de sessenta e setenta, quando empresários decidiram rumar à terra do Tio Sam com objetivo de comercializar os grãos produzidos no município. As portas até então estavam fechadas para comercio internacional, sem contar que receberiam em dólar.
Um só granjeiro não somaria quantia necessária para importar e ainda obter lucro, portanto, uma comitiva formada por seleto grupo de “barões” rumou aos Estados Unidos.

Evidentemente a viajem tornou-se um marco na época. Barrenses com destino aos Estados Unidos, e pasmem, comercializando nossos produtos. Alguns permaneceram céticos frente ao sucesso, outros empolgados sob-perspectiva de receber em dólar. Porém, ninguém previu o impacto gerado, em solo americano, por comitiva do interior do Rio Grande do Sul.

A “trupe” iniciou sua jornada e, ao pisar em solo americano, um guia os esperava. Apresentou a cidade, cultura norte-americana, lugares a serem frequentados e etc. Mas, uma peculiaridade americana não passou despercebida. Dentre tantos, um audaz empresário indagou o porquê de caminharem por apenas uma das calçadas. O guia então respondeu que havia diferenciação entre cidadãos de tez escura e clara. Portanto, calçadas, estabelecimentos, escolas e outras tantas instituições visivelmente “adaptadas” as condições impostas pelo preconceito.
O ceticismo pairou sob os granjeiros. Negavam-se a acreditar. Foi quando, repentinamente, um os granjeiros destoou dos demais, cruzou a rua, e passou a caminhar na calçada destinada aos negros. O guia, americano ou brasileiro habituado aos preceitos norte americanos, surtou. Considerou tal atitude uma afronta às normas sociais americanas. O brasileiro seguiu caminhando e, ainda mais surpreendentemente, entrou em restaurante, obviamente destinado a negros. A comitiva seguiu o impetuoso conterrâneo. Inicialmente o chefe do restaurante, naturalmente negro, surpreendeu-se frente ao grupo em seu restaurante. Mas foi rapidamente persuadido pelo barrense. O brasileiro argumentou que em sua terra natal não havia racismo. As calçadas eram para todos, sem diferenciação. Ainda ressaltou que as profissões em sua granja independiam de “raça”. O chefe sensibilizou-se e serviu o melhor prato para a comitiva.

O guia embasbacado não reagiu. Seu baixo e racista intelecto considerou uma afronta aos padrões sociais de época. Porém, a comitiva realizava o mais nobre ato para frear e desmoralizar o racismo.
Se a sociedade americana, e porque não a brasileira, considerava racismo algo a ser extinto, agiam hipocritamente. Os americanos, em suas atitudes, desmerecem o árduo trabalho de Abraham Lincoln.

Cidadãos de terceiro mundo, civis de um país subdesenvolvido apresentaram o cartão de visitas brasileiro: aversão à discriminação racial.

O causo ganhou notoriedade na cidade. Pudera, um interiorano barrense enfrentou a toda uma sociedade e seus preconceitos arcaicos com singelo ato de atravessar rua e alimentar-se em restaurante. Barrenses quebrando paradigmas em solo norte-americano. Quanto aos negócios? O maior tratado foi demonstrar, em atitudes, a ojeriza ao racismo.

De fato, estes foram tempos nebulosos que deixaram cicatrizes na historia mundial.
A “trupe” brasileira quebrou paradigmas. Suspeito, e ainda mantenho-me cético, que norte-americanos consideram e consideravam America Latina residência de seres desprovidos de inteligência. Estes nobres tupiniquins responderam à altura. Um basta ao racismo perpetuado.

***

Se, no decorrer do texto, passei impressão que não há racismo em solo brasileiro, me perdoem. São 386 anos de escravidão. Décadas e décadas de violência policial racista e exclusão. 512 anos de discriminação.
Não que o racismo em terras tupiniquins foi abolido, talvez “formalmente”. Um cidadão que não teve acesso a boas escolas desde o berço e encara o lado desagradável da pirâmide social logo depois de abrir os olhos é incapaz de raciocinar sobre sua condição e compreender que enfrenta dificuldades pelas quais não tem a menor responsabilidade como indivíduo, mas como herdeiro de uma estrutura social desigual e injusta.

O dito causo ocorreu durante ditadura militar, cujo governo ficou reconhecido por polarizar classes sociais. Pós-ditadura governos democráticos adotaram ações afirmativas como métodos de frear desigualdade social e discriminação racial. O empresariado surpreendeu por, durante regime militar, demonstrar em atitudes aversão ao racismo.